domingo, 28 de fevereiro de 2010

Carlitos.

Perdi um pedaço esses dias, um pedaço já velho e dorminhoco...mas tão leve e doce que somente a possibilidade de perdê-lo já me desesperava. Foi assim, dormindo como um anjo que era. Sem perceber, nem nada... simplesmente se foi. Eu pedi que me avisassem com uma certa antecedência quando fosse acontecer, mas ninguém avisa, de repente te rrancam às lágrimas sem força e o maior pedaço do coração com tanta facilidade, que quando dei por mim tava assim: sem ele. Eu já havia me acostumado com àquela figura sentada, a forma pequena de pegar no sono, o braço firme que já não tão firme assim, o bigode grisalho, as entradas da careca, a expressão do rosto quando lhe interessava algo, a surdez facultativa, o cigarro entre os dedos, a voz... Que saudade eu tenho de ouvir àquela voz... Meu Deus! Que falta me faz... Tudo parece começar a diminuir. Nada é tão importante, nem tão fantástico assim... São apenas pedaços, que devagar vai desaparecendo. Como um quebra-cabeças, ele continua sendo um quebra-cabeças sem um pedaço. Se nos concentrarmos lembramos do pedaço que falta, imaginamos ele na figura e pronto! E também uma peça apenas do quebra cabeça não faz tanta diferença, não é mesmo? A imagem continua sendo a mesma, mas incompleta...falta um pedaço, mas dessa vez não está debaixo do tapete ou no braço do sofá, não se pode substituir, é impossível. Dessa vez, se foi pra sempre, a imagem nunca mais será a mesma. Perdi um pedaço fundamental da minha vida. Ainda caminho, durmo, como, sorrio, choro, transo, bebo, fumo, vivo enfim! Ainda sou àquela imagem. É tudo tão perto que os pedaços próximos a serem arrancados, vão se tornando peças possíveis a desaparecer, afinal é assim mesmo, não foi diferente com ninguém. “Quando eu o vi morto pela primeira vez, fazia menos de 1 hora que ele havia partido, ainda tinha uma certa temperatura “natural”, estava de barriga pra cima, deitado como se dormisse... fui a primeira a vê-lo e me deparei com seus olhos abertos ainda, àqueles olhos que depois de um certo tempo eu já não distinguia a sua cor, mas eram lindos e sedutores. Pus minhas mãos sobre sua testa e deslizei suavemente sobre suas pálpebras já um pouco rígidas, voltei a repetir o movimento e as fechei. Eu vi a cor dos olhos dele pela última vez e assim mesmo não consegui adivinhar a sua cor.”

Amelie

... e se me pego assim, ao olhar a chuva por um pedaço de céu que minha casa permite... insisto na esperança de confortar minha ânsia instalada na garganta. Tem um gosto de cigarro que não cessa...uma mão diferente da outra. Um pulo estranho no peito que se confunde com esses pingos ensurdecedores do temporal, que não vai embora... olho ao redor: uma casa vazia, uma cama vazia, uma geladeira vazia, meu copo vazio, me bolso vazio. Tudo tão esgotado na minha cabeça, tudo não cheio... imagino minha cabeça crescendo e crescendo...tomando conta da casa, do copo, da geladeira. Penso nas minhas pernas que doem e eu não sei porque. Volto pra minha cabeça e imagino minhas veias salientes na testa que também cresce... Um barulho no telhado: vai, salta da cama, abre a janela. Um pedaço de escombro. Mais um dentre vários que vejo pela janela, misturado a ferros e cimento. Eles estão me enterrando!? Passa pela minha grande cabeça a interrogação. Lembro de algum lugar homens com ferramentas pesadas nas mãos, cavando, empurrando, subindo, cuspindo, gritando. Barulho de rádio à pilha...são eles! Eles voltaram. Posso sair pela porta, penso. A porta dá para o corredor, o corredor dá para uma outra porta, que dá para rua. Pronto, já, já estarei na rua. Vou até a porta me certificar. A porta está trancada com a chave, mas a chave não está na porta e há essas horas eu não vou conseguir encontrar a chave e provavelmente eu a tenha perdido ou deixado em algum lugar que jamais eu acharei...ou, até a próxima mudança... mas até lá, eles já vão ter conseguido me enterrar. Estão enterrando a minha casa! Alguém? Estão me enterrando viva, eu e minha cabeçona. Ninguém vai vir aqui? Amelie! Começo a sentir minha nuca sendo puxada para cima, minha cabeça dói junto com minhas pernas, o frio me treme, minhas mãos continuam diferentes, meu pescoço sua e arrepia junto com minhas orelhas, queixo...acho que minha cabeça está crescendo, agora minhas costas estremecem e meus olhos choram. Sinto saudade de Amelie. Ela foi esperta, saiu antes de ser enterrada. Acho que descobriu que seria impossível sair daqui. Fugiu da casa, da geladeira, do bolso...eu nem percebi. Deixou seus pêlos e sua cama, também vazia. Começo a pensar o quanto ela ficou sozinha dentro da casa, pensando no seu tamanho, imagino quão vazia se parecia a casa aos seus pequenos lindo olhinhos. Não me sinto bem. Amelie não gostava de mim.. na verdade ela tentou. Tentou tanto que eu a amasse... desculpa, as vezes eu não sei amar como se deve. Eu poderia ter sido mais legal... Eu poderia não ter deixado a casa tão vazia. Amelie! Tenho uma pacote de bolachas água e sal pela metade, estou com sorte. Mais um barulho... mais um escombro. Confiro as horas e me inquieto. O que fazer?Continuo esperando... Amelie.